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Campos Eléctricos

Num dia de céu azul, no meio da planície alentejana, afastado de qualquer casa ou linha de alta tensão, o campo eléctrico tem o valor de cerca de 100 V/m. Dito de outra maneira: entre o solo e um ponto a dois metros de altura existe uma diferença de potencial de 200 V. Já tinha imaginado que entre os seus pés e a sua cabeça poderia existir uma diferença de potencial de quase duzentos volt? E se pegarmos numa torradeira, separarmos os dois fios, ligarmos um fio ao chão e colocarmos o outro fio a dois metros de altura, será que podemos fazer torradas? Qualquer pessoa responderá a esta pergunta dizendo que não. Possivelmente pensa que se fosse possível já alguém tinha divulgado este segredo para deixar de pagar as facturas da EDP. Mas, não estamos fartos de saber que a EDP nos coloca em casa a electricidade a uma tensão de 220 V? Será que os vinte volt que faltam é que fazem a diferença? Se fosse assim bastava pôr o fio a dois metros e vinte centímetros! Nada disto. A razão não tem que ver com a diferença de potencial, tem que ver com a corrente eléctrica, isto é, com o movimento das cargas eléctricas. O que torra o pão é o calor libertado na resistência da torradeira pela passagem da corrente.

No exemplo da torradeira, com o fio no ar e o outro no chão, não existe corrente eléctrica. Para existir corrente teria que existir no circuito um dispositivo, chamado fem, (força electromotriz) que disponibilizasse as cargas eléctricas. Uma bateria de automóvel, por exemplo, é um destes dispositivos. Entre os seus terminais temos uma diferença de 12 V, mas a bateria, devido às reacções químicas que têm lugar no seu interior, pode fornecer cargas eléctricas. Então, se ligarmos aos terminais dois fios e fecharmos o circuito através de uma resistência, vai existir corrente eléctrica.

O corpo humano é um condutor. A maior ou menor facilidade dos condutores para conduzirem corrente eléctrica é dada por um parâmetro chamado condutibilidade, s. Assim, para o cobre temos s=6*107 (O m)-1. Diferentes tecidos do corpo humano têm condutibilidades diferentes, mas sempre da ordem das centenas de milhões de vezes mais pequenas. Por exemplo, o líquido cerebroespinal tem s=1,5 (O m)-1.enquanto que para a pele seca temos um valor de à que é ainda cerca de dez milhões de vezes menor. Mesmo com estas condutibilidades, quando o leitor estiver de pé na planície alentejana no tal dia de Verão, a sua cabeça não estará a 200 V mas sim ao potencial da Terra, zero volt e, do mesmo modo que a torradeira não faz torradas, o seu corpo não sofre qualquer efeito.

espectro

Campos eléctricos

Consideremos agora a questão do campo eléctrico criado pelas linhas de alta tensão. A primeira diferença é que, por baixo de uma dessas linhas a dois metros do chão, teremos um potencial de dois ou três milhares de volt. Se fosse só esta a diferença continuávamos a não ter corrente eléctrica. Contudo, não é assim. O campo eléctrico produzido pela linha de transporte é variável no tempo, com uma frequência de 50 ciclos por segundo (50 Hz). Sendo assim, as leis da Física dizem-nos que esta variação do campo eléctrico com o tempo vai induzir uma corrente eléctrica. Então o corpo da pessoa situada de pé debaixo da linha de alta tensão vai ser percorrido por uma corrente cuja densidade é da ordem de 5 µA/m2 para um campo de 2 kV/m, ou seja, para um condutor cilíndrico de 10 cm de raio teríamos uma intensidade de corrente de I=0,15 µA (=0,00000015 A).

Depois de tantos números o leitor estará a perguntar: qual é o efeito desta corrente induzida? O mesmo de qualquer outra corrente injectada no corpo através de dois eléctrodos. Sabe-se que o limiar para sentir um choque é variável de pessoa para pessoa, mas situa-se à volta de 300 µA, duas mil vezes o valor estimado anteriormente! Para uma corrente com uma intensidade quatro vezes maior existirá para todas as pessoas uma sensação de choque, mas sem perda de qualquer controlo muscular. Se continuarmos a aumentar a corrente, a cerca de 0,1 A poderá ocorrer quebra do ritmo cardíaco com possível fibrilação ventricular. Em resumo, se o leitor estiver perto de uma linha de alta tensão não vai sentir nada. Apenas se tiver uns bons sapatos isoladores poderá impedir que a corrente induzida se escoe para a Terra. Neste caso, se tocar depois numa superfície metálica sentirá um pequeno choque parecido ao que sente quando está sentado no seu automóvel com uma camisola de fibra e depois sai do carro e fecha a porta.

Debaixo da linha de alta tensão não dá para fazer torradas mas podemos acender, ainda que com intensidade luminosa reduzida, uma lâmpada fluorescente. É verdade. Vamos perceber porquê. O ar é constituído por uma mistura de gases e cada molécula desses gases é electricamente neutra. Contudo, existe sempre uma pequena fracção que perdeu alguns electrões, tornando-se electricamente positiva, e, por outro lado, estes electrões agora livres estão disponíveis para, sob a acção do campo eléctrico, se porem em marcha. Como o campo eléctrico é mais intenso perto da linha as cargas que aí se encontram é que vão ser mais aceleradas. Deste modo ganham energia e ao chocarem com outras moléculas neutras arrancam-lhes electrões e produzem mais cargas eléctricas. Temos então na vizinhança do cabo de alta tensão um gás ionizado, um plasma. Como o campo é variável no tempo, o plasma oscila e esta oscilação produz um ruído característico. À medida que nos afastamos da linha, o campo diminui, a força a que as cargas livres ficam sujeitas é portanto menor e elas não ganham energia suficiente para provocarem novas ionizações. A zona do plasma termina. É claro que, se o campo eléctrico fosse muito mais intenso, não da ordem do milhar de volt, como nas linhas da REN, mas do milhão de volt, como acontece nas nuvens de trovoada, a ionização do ar progrediria rapidamente em efeito de avalanche e entre a nuvem e o solo produzir-se-ia uma faísca. Neste caso, a faísca é como se fosse um fio virtual percorrido por uma corrente da ordem das dezenas de milhar de amperes. Talvez seja interessante referir que o primeiro tipo de descarga, chamada corona, também ocorre na natureza. É bem conhecido desde os primeiros anos das navegações o aparecimento de uma luminosidade nos mastros das caravelas. Esta luminosidade é o plasma de corona, agora produzido pelo campo eléctrico natural. Entre os marinheiros é conhecido por fogo-de-santelmo.

As lâmpadas fluorescentes tiram partido da emissão de luz produzida por este efeito de descarga num gás rarefeito. Então, quando colocadas no campo eléctrico de uma linha de alta tensão, produzem no seu interior um fogo-de-santelmo. Contudo, deste facto não se pode deduzir qualquer perigosidade. Apenas podemos concluir que vimos o “lume vivo que a marítima gente tem por santo”.

«Vi, claramente visto, o lume vivo Que a marítima gente tem por santo, Em tempo de tormenta e vento esquivo, De tempestade escura e triste pranto.»
Camões, Lusíadas V-18

Augusto Barroso
(Presidente da SPF, 2007-2009)

A SPF agradece o apoio da REN, Redes Energéticas Nacionais.